ENTREVISTA – AVNER GVARYAHU

Avner

Avner Gvaryahu é membro do movimento “Quebrando o Silêncio”, de ex-soldados israelenses que resolveram contar ao mundo o que realmente acontece nas ocupações na Palestina. Junto com mais mil ex-soldados, recolhem vídeos e relatos de torturas e terror praticados pelos soldados israelenses contra civis palestinos.

Avner, que combateu entre (2004-2007), conversou comigo direto de Tel Aviv, por telefone.

PABLO- Por quê você decidiu se juntar ao movimento “Quebrando o Silêncio” com centenas de outros soldados e contar sua experiência nas ocupações?

AVNER – Minha primeira missão envolveu a invasão de uma casa palestina. Eu nunca tinha tido a oportunidade de estar dentro de uma casa palestina. Dentro da casa morava uma família inteira, composta por três gerações. Nós acordamos todos e dissemos que estávamos ocupando a casa por motivos militares. Colocamos todos em um quarto – mulheres, homens, crianças e idosos. Um dos soldados ficou na porta para garantir que eles não saíssem. Nesse meio tempo, ficamos cuidando da operação nos outros cômodos da casa. Lembro de ficar me perguntando: o que será que eles pensam sobre tudo isso? O que eu faria se os soldados invadissem a minha casa? Mas eu imediatamente parava de me questionar e voltava para a missão. Com o tempo, o medo comum de um soldado recém-chegado à batalha se transformou em tédio, a adrenalina estabilizou, mas vez ou outra eu ficava pensando se aquilo que eu estava fazendo era certo ou errado. Algo me incomodava. Com o tempo, as invasões às casas de palestinos já faziam parte da rotina. Essa era a nossa rotina diária, e, na próxima vez que entrei numa casa palestina, já não senti o mesmo que havia sentido na primeira vez. Parecia que eu não sabia mais o que era certo ou errado. Com o tempo, já não estava incomodado quando destruíamos casas inteiras durante as operações de busca, ou quando meu esquadrão atirou acidentalmente em uma mulher inocente e nós rapidamente enterramos o corpo e seguimos em frente com nossa missão. Hoje já consigo distinguir o limite do que é certo ou errado, mas naquela época, isso não passava mais pela minha cabeça. Foi então que fiquei sabendo do movimento “Quebrando o Silêncio” e resolvi compartilhar minha experiência.

PABLO- Além das invasões às casas de palestinos, que tipo de outras operações você participava?

AVNER- A ordem principal que tínhamos era controlar todos os movimentos dos palestinos, o mínimo que fosse. Havia locais onde eles não eram permitidos caminhar e outros onde não podiam dirigir, por exemplo. Fechamos muitas lojas e comércios, em algumas regiões controlamos a quantidade de água potável e comida disponível. Também separávamos famílias e as levávamos para lugares distantes umas das outras. Na verdade, nossa principal tática era separar os palestinos. Estávamos separando eles uns dos outros dia após dia e os levando para locais menores e mais distantes. Mas, para mim, o pior de tudo ainda eram as ocupações de residências no meio da noite.

PABLO-  Como é que os palestinos reagiam?

AVNER- Eles raramente reagiam. Praticamente não tinham armas. Muitas vezes víamos crianças jogando pedras. Quando reagiam, na maioria das vezes, era de forma pacífica. Faziam caminhadas segurando suas bandeiras. Mesmo assim não permitíamos que protestassem. Íamos até lá e prendíamos todos os manifestantes.

PABLO- Mesmo as manifestações pacíficas?

AVNER- Sim. Na verdade, controlar tudo o que os palestinos fazem, faz parte do controle militar. É uma forma de dizer a eles que quem manda na região é a IDF (Força Armada de Israel).

PABLO-  E quanto aos palestinos armados. Como vocês reagiam aos membros do Hamas, por exemplo?

AVNER- Tem o depoimento de um ex-soldado que é bem interessante. Ele diz que uma vez, o batalhão dele recebeu ordens de bombardear as casas de membros do Hamas, mesmo sem o grupo oferecer nenhum risco para soldados israelenses na região. No momento do bombardeio, havia crianças e mulheres naquela casa, inclusive uma mulher conseguiu sair dos escombros com um bebê no colo— sinal de que tinha inocentes naquela residência.

PABLO- Você acha que o Hamas estava usando essas mulheres e crianças como “Escudo Humano”?

AVNER- Não tem como dizer. Pode ser que sim, pode ser que não.

PABLO- E quanto aos soldados israelenses. Vocês já usaram civis palestinos como “Escudo Humano?

AVNER- Em 2006, houve várias operações em que foram usados palestinos como “Escudo Humano”. Já foram usados até crianças como “Escudo Humano”. Há também casos famosos que aconteceram em 2003, 2005 e 2009, mas não sei dizer se isso acontece o tempo inteiro.

PABLO- Mas  usar  civis como “Escudo Humano” é crime de guerra.

AVNER- O IDF faz muitas coisas que são ilegais. Desde o uso de civis palestinos como “Escudo Humano”  até ataques com fósforo branco e ataque de retaliação. Os ataques de retaliação aconteceram ocorreram em várias ocasiões, uma delas após a morte de soldados israelenses pelo Hamas. Nessas situações, o batalhão recebeu ordens para atacar a região onde ocorreu o assassinato dos soldados israelenses, o que resultou em muitas mortes, incluindo civis.

PABLO- Me fale mais sobre o processo de controle das regiões ocupadas.

AVNER-Bem, acontece de tudo nas regiões ocupadas. É difícil dizer o que realmente ocorre em cada região, mas com base nos depoimentos que já foram coletados, vários soldados testemunharam intimidações, torturas e espancamentos. Alguns soldados chegam a tirar fotos com os corpos dos palestinos após assassiná-los. Não é possível relatar tudo o que acontece, mas com base em todos os depoimentos que conseguimos reunir, as experiências dos ex-soldados têm mostrado que o que ocorre na Faixa de Gaza e na Cisjordânia não difere muito entre si. Outro ponto importante a ser mencionado é que as leis para palestinos e israelenses são completamente diferentes. Os israelenses seguem as leis civis de Israel, enquanto os palestinos são julgados com base nas leis militares. Por exemplo, em caso de uma briga entre um israelense e um palestino, o israelense será julgado de acordo com as leis civis, enquanto o palestino será tratado como terrorista.

PABLO-  A mídia ocidental geralmente mostra os palestinos como terroristas enquanto  os israelenses são representados como vítimas da violência dos palestinos.  Vocês pretendem de alguma forma, através do “Quebrando o Silêncio”, mudar esses conceitos?

AVNER-O problema é muito mais complexo do que isso. Acredito que a abordagem “Pró-Israel” ou “Pró-Palestina” não contribui de forma construtiva. Nossa missão com o “Quebrando o Silêncio” é expor a verdade sobre o que ocorre nas regiões ocupadas e mobilizar as pessoas para que possam pressionar o governo israelense a encerrar as ocupações. Acredito que somente ao pôr fim às ocupações será possível resolver os conflitos. Para fortalecer Israel e torná-lo mais seguro, é necessário também fortalecer a Palestina. É preciso trabalhar em conjunto.

PABLO- Mas você se considera vítima?

AVNER-O Yehuda Shaul, um dos fundadores do movimento “Quebrando o Silêncio”, expressa algo interessante: “Depois de tudo o que fiz e vi nas ocupações, ninguém consegue me convencer de que sou uma vítima.”

PABLO- Você não se considera um traidor da sua própria pátria?

AVNER-O que é pior: ser um traidor por contar a verdade ou não ser um traidor e esconder a terrível verdade sobre a política de nossa nação, que tem violado constantemente os direitos humanos nas últimas cinco décadas?

PABLO- Além de contar a verdade por meio dos depoimentos de mais de mil ex-soldados, o que você considera que tenha sido positivo na campanha “Quebrando o Silêncio” desde a  sua fundação em 2004?

AVNER-Veja, o fato de muitas pessoas já terem noção do que está acontecendo nas ocupações é, sem dúvida, um grande avanço. No entanto, considero que os pequenos avanços nas regiões ocupadas ainda estão longe de serem considerados sucessos. Estamos tentando mostrar a realidade das ocupações desde 2004 e temos tentado reeducar as pessoas para que compreendam o que realmente ocorre nessas áreas. Sem dúvida, estamos otimistas de que muitas pessoas já estão cientes da realidade das ocupações e que começaram a denunciar esses problemas em todo o mundo. Vários jornalistas, ativistas, cientistas e artistas já estão falando e denunciando as ilegalidades das ocupações, mas não sei se isso pode ser realmente considerado um ponto positivo por si só.

PABLO- Muitos reservistas estão se recusando a ir ao combate. Isso pode ser considerado um ponto positivo? Você vê alguma ligação entre esses movimentos com o “Quebrando o Silêncio”?

AVNER- Eu não sei, esses grupos não estão conectados ao nosso movimento. Existem vários movimentos em Israel que se opõem às ocupações. Não somos o único grupo israelense que se opõe à ocupação, mas sem dúvida temos feito algo para influenciar outros grupos. O movimento “Quebrando o Silêncio” não necessariamente pede aos soldados que se recusem a ir para o campo de batalha. Nossa intenção é apenas relatar a realidade do que está acontecendo nas ocupações. No entanto, existem grupos mais políticos que discutem propostas de solução para as ocupações, da mesma forma que há outros grupos que promovem a não participação de reservistas na IDF.

pales

Hebrom, Csjordânia- 2006.

PABLO- Você enxerga esses movimentos contra as ocupações, junto ao “Quebrando o Silêncio”, peças importantes  no fim das ocupações num futuro próximo?

AVNER- Eu acredito que o problema das ocupações é puramente político. Acho que tanto na Palestina como em Israel, é preciso pressionar os líderes para que cheguem a um acordo comum. Tenho convicção de que não dá mais para sustentar essa situação. Não podemos aceitar que, em 2014, as pessoas sejam controladas à força sem nenhum direito. Acredito também que é necessário ter mais movimentos políticos e sociais aqui em Israel. Precisamos de mais movimentos contra as ocupações para pressionar o governo. Ainda não há movimentos suficientes para encerrar as ocupações. Na semana passada, milhares de pessoas se reuniram em várias partes de Tel Aviv para protestar contra os ataques na Faixa de Gaza. Ficamos satisfeitos com a cobertura da imprensa. Vários ex-soldados deram seus depoimentos sobre a situação das ocupações. Uma coisa é certa: muitas pessoas não têm mais dúvidas sobre o que acontece nas ocupações na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. E todos que sabem o que está acontecendo nas ocupações têm consciência de que a situação é muito triste e desumana.

Veja os depoimentos dos ex-soldados no site

http://www.breakingthesilence.org.il

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